sábado, 3 de março de 2012

Um silêncio chamado Tenório

No último dia 4 de janeiro, um homem foi preso em Santa Catarina, acusado de estelionato depois de tentar aplicar um golpe na região Oeste do estado. Logo surgiram as suspeitas de tratar-se de um ex-integrante do temido Serviço de Informação Naval da Marinha Argentina durante a ditadura militar que ensangüentou o país vizinho nos anos 70 e 80. Não demorou para a prisão de Claudio Vallejos repercutir na Argentina, que agora pede sua extradição.

Em 1986, em entrevista à revista Senhor (nº 270), Vallejos admitiu ter participado de sessões de tortura contra oponentes do regime e do seqüestro do pianista brasileiro Francisco Tenório Cerqueira Junior (foto), conhecido no meio musical como Tenorinho. Na ocasião, março de 1976, o músico se apresentava em Buenos Aires, acompanhando Vinícius de Moraes e Toquinho. Até hoje o seu paradeiro é desconhecido.  

A notícia da prisão do ex-torturador reacende a esperança de que o episódio envolvendo o artista brasileiro possa ser elucidado de uma vez por todas. Sabe-se, com certeza, que Tenorinho foi torturado barbaramente e morto com um tiro à queima-roupa. O destino de seus restos mortais, no entanto, continua sendo um mistério, bem como a identidade de seus algozes. Abaixo, resgato um pouco desta história. Para que Tenório não caia no esquecimento, como querem aqueles que o mataram.

Buenos Aires, 1976

Na noite de 18 de março de 1976, o pianista Francisco Tenório Júnior faria, sem saber, a última apresentação de sua vida. Depois de acompanhar Vinicius de Moraes e Toquinho no Teatro Grand Rex, em Buenos Aires, o músico foi para o Hotel Normandie, onde estava hospedado. Queria descansar um pouco, pois estava com uma leve dor de cabeça.

Às três horas da manhã, Tenório levantou-se e saiu. Antes, teve o cuidado de deixar um bilhete colado na porta do quarto de Vinicius: “Vou sair para comprar cigarros e um remédio. Volto logo”. Foram suas últimas palavras antes de descer ao inferno.

Sem que ninguém pudesse imaginar, o general Jorge Rafael Videla preparava em sigilo o golpe militar que, dias depois, deporia a presidenta Isabelita Perón. Por isso, a polícia secreta argentina já estava nas ruas caçando comunistas. E Tenório Júnior era o homem errado, no lugar errado.

Ao dobrar uma esquina da Avenida Corrientes, o músico foi abordado por um grupo de militares. Sua barba e seus cabelos compridos o levaram a ser confundido com um militante de esquerda. Informou que era pianista de Vinicius de Moraes, mas de nada adiantou: o poeta, autor da Garota de Ipanema, era tido como um artista “subversivo” no país e os agentes o fizeram entrar no carro.

No próximo dia 18, fará 36 anos que o músico brasileiro desapareceu em Buenos Aires. Poucos, porém, são os que se lembram do episódio, que permanece envolto em nuvens de fumaça e de um conveniente silêncio da mídia e do Estado brasileiro. Segundo o produtor cultural argentino Juan Trasmonte, que pretende fazer um filme sobre a história do pianista, Tenório Júnior desapareceu duas vezes: “A primeira nas mãos dos seus algozes e a segunda no silêncio do Brasil”.

Para Trasmonte, surpreende o fato de a sociedade brasileira desconhecer ou demonstrar pouco interesse no caso: “Tenório não somente era um cidadão brasileiro desaparecido na Argentina, mas um músico que tinha viajado para acompanhar ninguém menos que Vinicius de Moraes”, diz.

Frederico Mendonça de Oliveira, o guitarrista Fredera, defende a tese de que o assassinato do músico foi resultado de uma operação muito bem articulada entre os órgãos de repressão brasileiros e argentinos. “Eles sabiam que Tenorinho era inocente, mas naquele tempo era importante arrancar nomes, mostrar que poderiam tirar leite de pedra”, afirma.

Fredera, que tocou ao lado de artistas como Gilberto Gil e Gonzaguinha, critica a omissão da classe artística no livro O Crime contra Tenório (Atenas Editorial, 1997). Segundo ele, todos preferiram fingir que nada havia acontecido. Apenas Vinicius e Ferreira Gullar — que na época estava exilado em Buenos Aires — empreenderam uma busca desesperada e inútil. Ninguém sabia de nada.

Dez anos após o desaparecimento do músico, quando as esperanças da família e dos amigos estavam quase esgotadas, um ex-integrante do serviço secreto argentino veio ao Brasil com uma série de dossiês debaixo do braço. Seu nome era Claudio Vallejos e havia atuado como torturador durante o regime. Ele estava entre os homens que abordaram Tenório Júnior naquela madrugada de 18 de março.

Segundo os documentos secretos vendidos à imprensa, Tenório foi levado para a Escuela de Mecánica de la Armada, a ESMA, que funcionaria mais tarde como uma espécie de campo de concentração para prisioneiros políticos. Suspeito de manter ligações com grupos subversivos na Argentina, o pianista passou pela “churrasqueira” (cama de molas usada para aplicar choques elétricos) e por sessões de afogamento.

Após nove dias sob tortura, Tenório Júnior era um morto-vivo. Como a repressão não poderia soltá-lo naquelas condições, decidiu matá-lo com um tiro na cabeça e enterrá-lo em uma vala comum. O assassinato foi consumado no dia 27 de março de 1976. O Brasil perdia um de seus músicos mais talentosos e o governo não teve sequer a dignidade de comunicar o fato à família.

Somente em 2006 o Estado brasileiro reconheceu ter “feito muito pouco” para localizar e devolver à família os restos mortais de Tenório Júnior. Trinta anos depois, sua mulher e filhos foram, finalmente, indenizados por danos morais e materiais. Ainda assim, o mistério sobre o paradeiro do pianista continua. Quem conviveu com Tenório tem a sensação de que ele ainda está vagando, a procura de cigarros, pela Avenida Corrientes.


[ Tenório Jr. gravou um único disco, pelo qual recebeu elogios da crítica. Era considerado um dos mais talentosos nomes do jazz brasileiro. Ouçam acima a faixa Nebulosa. ]

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