Buenos Aires, 23 de novembro de 2012
Mais
de 7 mil pessoas, jovens em sua maioria, lotaram o estádio Luna Park, em Buenos
Aires, para reverenciar a Silvio Rodriguez na noite do último dia 23 de novembro.
Era o primeiro de dois shows que o cantor e compositor cubano faria na capital
argentina, seis meses depois de ter se apresentado naquela cidade. “Uma
tremenda surpresa para mim, voltar em tão pouco tempo”, declarou o artista, em
suas primeiras palavras ao público que o recebeu de pé, aos gritos
de “Cuba, Cuba, el pueblo te saluda!”.
A
primeira impressão que Silvio transmite diante do microfone é a de ser um homem
reservado, de gestos contidos e grande controle emocional. A partir do momento
em que sobe ao palco, parece recusar a sua condição de astro da música popular
latino-americana – o que fica patente em sua opção por se sentar em meio aos
músicos que o acompanham, nunca à frente, raramente em posição de destaque. O show não é
individual, mas coletivo – como o demonstra na singela atitude.
No
palco, a postura de Silvio Rodriguez se parece muito com a de seu amigo Chico Buarque.
Poder-se-ia dizer que são irmãos de sangue, separados pelo mar do Caribe, dada a
timidez (o termo mais apropriado não seria timidez, mas vá lá...) com que
cumprem o roteiro dos shows. Falam pouco. Passam a maior parte do tempo sentados, protegidos
pelo violão. E cantam olhando para o chão, ou para o vazio.
Para decepção dos jornalistas (sempre em busca de polêmicas envolvendo declarações de apoio a Cuba ou aos governos de esquerda da América do Sul), Silvio não utilizou o microfone para
defender a presidenta Cristina Kirchner da recente onda de protestos de que tem sido alvo – apesar dos gritos de “Viva Cristina”
e “Viva Nestor”, que vez ou outra espocavam na plateia, incitando-o a dizer algo. O fato é que, na manhã do
show, o trovador foi recebido por Cristina K com honras de chefe de estado na Casa
Rosada – e isto já foi motivo para críticas na imprensa. Não é preciso que se
posicione diante das câmeras, pois sua obra é a expressão fiel do que ele pensa
acerca da vida, do amor e da política.
Espécie
de porta-voz não oficial da revolução cubana, suas passagens pelos países da
América Latina costumam vir acompanhadas de protestos. Dessa vez, a direita
argentina não foi à frente do teatro para queimar bandeiras de Cuba, mas
vomitou seu ódio a Silvio na internet – como se o autor de canções que
falam de amor e liberdade fosse responsável pelos crimes da “ditadura cubana”. A
estes, Silvio nunca responde. Tem coisas maiores com que se preocupar.
Atento
às letras das canções, o público aplaude efusivamente quando capta a mensagem
política ou existencial escondida atrás de uma metáfora. Ele entende que a voz
de Silvio não é apenas a voz de Cuba, mas de toda a América Latina, uma vez que
canta dores semelhantes e sonhos iguais. Os argentinos, por óbvio, estavam em
franca maioria no estádio Luna Park. Mas gente de toda a América Latina havia
se deslocado de seus países para prestigiar um dos grandes ídolos geracionais
do continente: vi colombianos, chilenos e uruguaios lado a lado, unidos pela bandeira da música. E o Brasil – até
que outro compatriota presente ao show se manifeste – esteve representado por este que
vos escreve.
Após
uma salva de palmas que durou uma eternidade, Silvio Rodriguez, sob a sombra do elegante chapéu panamá que passou a usar nos últimos anos, avisou que estava
resfriado e pediu ao público que perdoasse eventuais deslizes na voz. “Não se
sintam culpados, pois a gripe veio comigo de Havana...”, informou, para depois arrancar
risos da plateia: "...Mas o clima de Buenos Aires acabou de me destruir”. Chovera durante quase
todo o dia.
Então, avisou que faria um show “mais intimista”, priorizando
canções de seu disco mais recente, Segunda
Cita. Abriu o concerto com uma sequência ainda pouco conhecida: Toma, La Guevarista, Tonada Del Albedrío (que arrancou aplausos pela frase “nenhum
intelectual deve ser assalariado do pensamento oficial”) e a belíssima Carta a Violeta Parra.
Só depois é que as músicas consagradas começaram a aparecer – e elas incendiaram as arquibancadas. Em coro, a multidão passou a
acompanhar o cantor. A primeira foi Santiago
de Chile, que versa sobre o golpe de estado contra
Salvador Allende, em 1973. Depois vieram El escaramujo, La era está
pariendo um corazón, Quien Fuera –
na qual cita Chico Buarque –, El Necio e Canción del elegido – que muitos, equivocadamente, pensam ser uma
homenagem a Che Guevara, quando na verdade é dedicada a Abel Santamaría,
amigo de Fidel torturado até a morte pela ditadura de Fulgêncio Baptista.
Antes de cantar San Petersburgo, uma das canções mais novas, Silvio explicou que ela nasceu de uma conversa casual com o escritor Gabriel Garcia Marquez durante um voo de Cuba para o México no qual eram os únicos passageiros. “Gabo me disse que, às vezes, vinham-lhe à mente ideias curtas, que não podiam ser aproveitadas em seus contos, mas que ele gostaria de aproveitá-las em forma de canções – se soubesse fazer canções. Passamos a viagem toda filosofando sobre isto”, contou.
Antes de cantar San Petersburgo, uma das canções mais novas, Silvio explicou que ela nasceu de uma conversa casual com o escritor Gabriel Garcia Marquez durante um voo de Cuba para o México no qual eram os únicos passageiros. “Gabo me disse que, às vezes, vinham-lhe à mente ideias curtas, que não podiam ser aproveitadas em seus contos, mas que ele gostaria de aproveitá-las em forma de canções – se soubesse fazer canções. Passamos a viagem toda filosofando sobre isto”, contou.
Meses
depois, Silvio desenvolveu uma dessas pequenas ideias anotadas por Gabriel Garcia Marquez –
sobre uma noiva abandonada no dia do casamento –, misturando-a com elementos da literatura russa, mais propriamente de Alexander Pushkin, um de seus autores favoritos. O resultado é uma canção emblemática, repleta de
imagens que se sucedem, aparentemente desvinculadas entre si (como num sonho),
mas que depois encontram um sentido comum no arremate final.
Toda
canção de Silvio Rodriguez é um hino individual ou coletivo. Mas nada supera a
força simbólica das canções que produziu nos anos 60 e 70. Estas foram as
escolhidas para encerrar o show: primeiro veio Angel para un final. Depois, Oleo
de mujer con sombrero, cuja execução foi demasiadamente rápida para a
comoção geral que seus primeiros acordes provocaram na plateia. O show chegava
ao fim.
Mas
ainda faltava um clássico inquestionável no programa. Então, depois de se
despedir pela primeira vez e se recolher ao camarim, o trovador voltou ao palco
para cantar, acompanhado de 7 mil vozes, aquela que talvez seja a sua melhor
canção – ou, pelo menos, uma das melhores: Ojalá,
imortalizada também por Mercedes Sosa.
Silvio
voltaria quatro vezes mais. Em uma delas, tomou a liberdade de cantar uma
canção infantil cubana. O público já estava em suas mãos e nenhuma das partes
parecia disposta a ir embora. Foi preciso que a organização do Luna Park acendesse
as luzes do estádio, depois do quinto bis, para que o show finalmente tivesse um
fim, após duas horas e meia de música. Foi quando Silvio sacou uma máquina fotográfica do bolso e tirou uma foto da plateia. “Viva Cuba!”, gritou o povo. “Viva a
Argentina!”, devolveu o cantor.
Lá fora, a Avenida Corrientes recebia uma brisa refrescante,
vinda de Puerto Madero, e tive que tomar um Fernet Cola para assimilar aquela
noite.
El Necio
Canción del elegido
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