BATENDO CONTRA AS PAREDES
Sérgio Santos
Meu
querido amigo e parceiro André Mehmari passou recentemente por um episódio que
ilustra de forma categórica uma série de questões que se colocam a todos que se
preocupam com a cultura, a educação, a arte e a sua propagação nos dias de
hoje. André, além de privilegiado por um talento musical incomum, pianista,
arranjador, compositor e multi-instrumentista, tem uma característica
individual que o distingue: é um dos artistas que conheço que mais encarnam na
própria obra (ou seja, muito além do mero discurso) a ausência de fronteiras
entre as diversas formas de expressão artística. Transita com destaque,
desenvoltura e verdade tanto pela música erudita quanto pela popular, tendo a
capacidade de ser premiado e reconhecido em ambas. Isso, garanto, não é nada fácil!
Talvez
por essa característica, pouca gente seria mais adequada que ele para fazer
parte como convidado de um projeto musical e educacional, que aconteceu em um
teatro em Campinas, para 600 jovens de 10-12 anos, alunos de escolas públicas.
O projeto de excelentes intenções, se chama “Ouvir Para Crescer”. Segundo
relato de André no Facebook, na apresentação havia, na sua primeira parte, um
grupo musical e atores caracterizados de palhaços que apresentavam de forma
lúdica as propriedades da linguagem da música, e até aí tudo transcorreu bem.
Depois meu amigo entrou no palco para apresentar ao piano a obra de Ernesto
Nazareth, e fazer com ela as pontes para outras formas de expressões musicais,
querendo com isso ilustrar justamente a ausência de fronteiras que o
preconceito impõe. Antes mesmo de começar, foi vaiado, xingado e ouviu
impropérios, lagartos e cobras que continuaram durante toda a apresentação,
vindos de uma platéia que, recordemos, tinha entre 10 e 12 anos! Estupefato,
como não poderia deixar de ser, André levou a apresentação mecanicamente até o
fim. Foram esses os fatos que, por ele expostos no Facebook, geraram centenas
de comentários, além de um texto de José Miguel Wisnick em sua coluna de hoje
no OGlobo.
Quero
meter a minha colher, com a licença de meu parceiro querido. De onde vem essa
reação tão contrastante com o espírito do evento? É preciso, sem justificar,
compreender essa reação coletiva. Como bem disse Wisnick, André está longe de
ser um cara cheio de mesuras e poses pseudo-eruditas, que poderiam sim
antepô-lo à garotada. Pelo contrário, tanto no trato pessoal quanto no palco, é
uma pessoa completamente simples, tendo inclusive uma verve acentuada de humor.
Por inúmeras vezes falamos tanta besteira no palco juntos, que sugeri a ele em
um de nossos shows que, caso a nossa música não desse resultado, poderíamos
fundar uma dupla de stand-up, tão em moda, o que certamente iria nos render
mais financeiramente que nossas composições, com o que a platéia, aliás,
concordou de imediato. Portanto, não está em uma postura formal, rígida, ou em
ares de superioridade, a origem da reação agressiva da platéia. Se não é por
aí, algo necessariamente tem que ter motivado essa atitude, principalmente se
pensarmos que a apresentação anterior ocorreu com tranquilidade.
O
problema pode estar então em Nazareth. Há os que argumentaram que a atitude
negativa se deveu ao choque de se querer impor a um segmento da sociedade um
tipo de linguagem de arte distante dele. Nessa argumentação, a meu ver está a
raiz do problema, e mais à frente direi o porque. Discordo veementemente dela!
E minha experiência pessoal é o meu maior argumento. Já fui chamado para uma
tarefa análoga a de André, há cerca de 10 anos, quando meu filho tinha
exatamente essa idade das crianças de Campinas, na própria sala de aula dele,
em uma escola particular de classe alta, tida como modelo na educação artística
(por isso inclusive meu filho estudava lá). Imaginei uma conversa mais ou menos
com a mesma perspectiva da de André, e quando comecei a tentar estabelecer um
diálogo, a indiferença e depois a balbúrdia foram tamanhas (inclusive por parte
de meu filho), que resolvi desistir e fui embora sem que ninguém ao menos
percebesse. Essa indiferença foi para mim mais agressiva do que ter sido
xingado, como meu amigo o foi. Conto o episódio porque ele mostra claramente
que a questão ultrapassa a maneira de se lidar com uma determinada classe
social. Ultrapassa também a questão de educação familiar, uma vez que sou a
principal testemunha ocular da educação que meu filho recebe em casa. Há aí um
componente que remete a um crescente desgaste e deterioração do ambiente
escolar, onde inexiste o reconhecimento da autoridade (o que em nada se relaciona
ao combate ao autoritarismo), e que levado às últimas consequências, gera as
atuais agressões físicas a professores, alunos armados em sala de aula, etc.
Embora ache que isso tenha pesado tanto no caso de André quanto no meu próprio,
no entanto, não creio que entender a nossa questão se resuma a isso.
Reafirmo
que a forma de ver a raiz do problema esteja na visão equivocada de quem
sustenta que a atitude de André quis “impor” Nazareth a um segmento social
“incapaz” de compreendê-lo. Vejamos: primeiramente, Nazareth não é
dodecafônico, Nazareth não foi um alienígena de difícil compreensão, ou um
compositor nascido na Monróvia. Nazareth retirou o material de sua criação da
música do povo brasileiro, das ruas, do choro, das valsas, do ambiente musical
popular de sua época. Sendo assim, a aberração está não em mostrar Nazareth ao
povo, mas no fato desse mesmo povo não ser capaz – não de “compreender” – mas
de se reconhecer minimamente em uma obra que se baseia na raiz de sua própria
forma de expressão, a ponto de recusá-la com veemência. Se há algo de errado
nesse enredo, o erro é esse! E, evidentemente a responsabilidade disso não está
nas crianças! Algo tem que ter ocorrido no percurso de tempo de Nazareth até
hoje, para fazer com que uma música que tenha vindo tão profundamente do povo
não seja reconhecida por esse próprio povo como parte de sua simbologia. É como
se eu não me visse em meu avô. E mais, como se eu jogasse uma pedra nele. André
não errou ao tentar devolver essa informação tão rica a quem na verdade a
originou. (Vou além, se ao invés de Nazareth fosse Chico Buarque, talvez os
resultados fossem os mesmos). André acertou na mosca! Erramos fomos todos nós,
que construímos uma sociedade imediatista, superficial, incapaz de se enxergar
fora dos modelos de consumo que nos são impostos. Erramos na educação, na
formação de um povo que tem raízes culturais absurdamente ricas em sua
diversidade. Mais que isso, nos mantivemos no erro por nunca termos dado,
enquanto sociedade, a mínima importância a toda essa riqueza. Erramos por
termos sido barbaramente elitistas, reservando unicamente aos mais favorecidos
o conhecimento desse patrimônio, e por termos permitido que a ganância da
indústria tenha sido durante todos esses anos o único parâmetro de formação artística
a que toda a sociedade tenha tido acesso. E, principalmente, vamos continuar
errando, se continuarmos a não enxergar que é imperiosa a necessidade do
contato da população com tudo o que de sublime, inteligente, original e genial
já se fez artisticamente nesse país. Essa seria e será nossa única forma de
corrigir o erro. E se o poder público não se preocupou e nem se preocupa em
promover ações sistemáticas nesse sentido, as ações pontuais como essa têm que
ser valorizadas! É preciso varrer essa idéia absurda, tacanha, reacionária,
mesquinha, atrasada, de que dar ao povo a oportunidade de acesso ao que de
melhor se produziu artisticamente é ser elitista ou paternalista.
Elitista
e covarde é essa visão tão em voga hoje em dia entre um punhado de intelectualóides
de buteco, de que tudo é arte, e que a preocupação de fazer com que as classes
menos favorecidas produzam a “sua” cultura já seja para elas o suficiente, e
portanto prescindam do conhecimento, da informação, do ato consciente e
generoso de olhar para trás para conhecer esse vasto mundo já construído,
chamado cultura brasileira. Se é positivo o fato das camadas populares deixarem
apenas de consumir cultura, passando também a produzí-la com suas próprias
linguagens, isso não pode ser confundido com a negação da necessidade do saber.
Se há sim um forte preconceito em sentido contrário – que nega as formas
próprias de expressão vindas e exercidas pelo próprio povo – há por outro lado
o equívoco cavalar dos que vêem nessa expressão uma “pureza” intocável, pelo
simples fato de que tenha sido o povo que a gerou, sem perceber o tamanho da
tarefa que é formar e educar na perspectiva da arte e da cultura vistas como
trajetória histórica. A miopia dessa visão vai a ponto de se considerar
imposição uma intenção inequivocamente generosa e justa como a de André Mehmari
de colocar a semente de Nazareth no coração desses jovens, já que foi na origem
popular deles que Nazareth tirou a semente de sua obra. Sob esse raciocínio,
concordo integralmente com Wisnick, é preciso romper os muros e fossos nos dois
sentidos. ”O povo sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe”,
frase lapidar do próprio Gilberto Gil. Eu acrescentaria: mesmo para não querer,
o povo merece todo o saber.
Há
inúmeros exemplos espalhados por aí de iniciativas cobertas de êxito ao se
colocar a arte com perspectiva histórica em contato com populações
desfavorecidas. Cito uma, na qual o próprio André tem participação: a Sinfônica
Heliópolis, que me comoveu com a excelência de seus músicos, todos jovens
oriundos de um ambiente socialmente degradado, tocando Stravinsky como gente
grande na Sala São Paulo. Não se trata de dizer que Stravinsky é melhor que
Naldo, ou de que o tal quadradinho de 8 valha menos que Ravel ou Jobim.
Trata-se de que é preciso que se defenda ferozmente o direito de escolha entre
um e outro. E, por mais que a população pobre felizmente hoje tenha mais a
oportunidade de ter a “mão na massa” no fazer de suas próprias expressões
culturais, infelizmente quem não tem a oportunidade do conhecimento jamais terá
o direito da escolha, e sem escolha vai sempre estar alijado de sua liberdade
mais fundamental. Trata-se aqui é dessa liberdade!
Meu caro
André, parceiro e amigo do peito, às vezes nos chocamos com as paredes, mas
nada que deva nos desanimar de nos armarmos das nossas picaretas sonoras para
derrubá-las. Devagar, essas paredes hão de vir algum dia abaixo. É uma questão
da física: a ressonância. O mero ruído do vento, e não a sua força, já foi
capaz de derrubar a Ponte de Tacoma, nos EUA. O som tem lá o seu poder. Se
vibrarmos nossa música com a frequência correta, ela pode entrar em ressonância
com a parede e derrubá-la. Tentemos fazer a nossa parte. É o que de melhor
podemos fazer.
Ei cara, vc é fanzona do quadrilheiro dirceu, não é? hahaha vai dar marmitinha na boquinha dele vai?
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