segunda-feira, 9 de abril de 2012

Choro pra bandolim


Tenho uma filha enterrada na Cacuia,
enterrada junto com milhares de olhares meus
que, sobre sua agonia, suplicavam que vivesse,
enterrada junto com outros meros números
nas estatísticas falsificadas
de nossa mortalidade infantil.

Tenho um futuro enterrado na Cacuia,
um deles,
enterrado
junto com os passeios de mãos dadas
e uma bicicleta verde
que não encostamos na relva suja
de nossas praças miseráveis.
Filha,
enquanto apodreces,
minha carne se retesa de amor
pelas meninas brasileiras.
Estou para sempre livre da necrofilia
porque fui abençoado por um instante
de luz em teus olhos escuros,
por um filete de sangue
de tuas narinas pequenas,
pela tua agonia sem metáforas
que me transformou nesse rebelde,
neste inconformado,
nesse ser agora diferente de você
visceralmente diferente de você
ansiosamente diferente de você
mortalmente diferente de você.

Às vezes, julgo te reconhecer
num carnaval, de clóvis na linha do trem,
num São João, com sobrancelhas pintadas de rolha,
no Maracanã, com a camisa do Vasco,
pivete, vendendo limão entre os carros,
mendiga, de pés descalços e barriga estofadinha de parasitas.

Às vezes, penso que ficaste soterrada
nos escombros de um barraco
durante a chuvarada,
ou que estavas entre as crianças
no circo que pegou fogo,
ma epidemia fatal de poliomelite,
de meningite, de burocratite,
na bala perdida,
no trem descarrilado,
no avião perdido por aí,
no bueiro aberto ou no escapamento de gás,
no fio de alta-tensão desencapado
ou no pronto-socorro do Andaraí,
onde tu entra cajá e sai caqui.
Mas, não. Estás enterrada na Cacuia,
ancorada na Ilha do Governador
e és terra, pó, lixo, talvez uma pequena
flor amarela que ninguém sabe o nome.

Dorme, filhinha, teu desperto sono de
coisa em transformação
que, no coração do Rio de Janeiro,
eu, teu pai e mau poeta,
velo ainda por tua lembrança
no momento derradeiro
até o interminável abraço que seremos
um dia: solo brasileiro.

(Aldir Blanc)