A Servidão Voluntária
O Santos deu muito a Neymar e Neymar deu muito ao Santos. O clube lhe deu formação, uma camisa sagrada para vestir e uma bela vitrine, além de um baita salário. O jogador retribuiu com títulos, aumento de sócios, visibilidade e faturamento, além de grandes alegrias. Estão pagos, um e outro.
Mais: Neymar deu, não ao Santos, mas ao futebol brasileiro, momentos inesquecíveis de beleza. Quem viu, viu, porque acabou. Agora só pela TV e com uma camisa que não nos diz nada. É diferente.
Vamos
dizer com franqueza: pelo dinheiro. Pela lógica do capital, e não por qualquer
dessas bobagens ditas por aí, tais como a possibilidade de aprimoramento
tático, jogar contra e entre os melhores, o compromisso com sua arte e
blá-blá-blá. Nada disso: é a força da grana, e deveríamos enfrentar o fato.
Nada existe de mal nisso. Se Neymar já ganha muito aqui, seu estafe antevê a
possibilidade de ganhar muito mais na Europa. Simples assim.
Pela tal
lógica do capital, Neymar já deveria ter saído muito antes, quando o Chelsea
fez proposta para contratá-lo e o Santos bolou um plano para que ficasse. Qual
a filosofia dessa engenharia econômica? Mostrar ao jogador que poderia aqui
ganhar tanto quanto lá. E, ao clube, que poderia faturar com a presença do
ídolo tanto quanto ou mais do que com sua venda. Os dois objetivos foram
realizados. O plano deu certo. Em parte. Onde falhou?
Como toda
ideia de fato inovadora, esta também tinha seu lado visionário, no bom sentido.
Se o Santos havia segurado sua estrela, outros clubes, por emulação, fariam o
mesmo. Poderíamos vislumbrar um círculo virtuoso, com o Brasil melhorando o
nível técnico do seu futebol, valorizando seu espetáculo, vendendo os direitos
de transmissão e, a médio prazo, rivalizando com a Europa. O ambiente econômico
era favorável: crescimento aqui, recessão lá. Quando teremos oportunidade
igual? No entanto, os outros clubes não seguiram esse caminho. O Inter vendeu
Oscar, o São Paulo vendeu Lucas e outras vendas de jovens, como Bernard, já se
anunciam. O próprio Santos cedeu e desfez-se do seu astro. A cada vez que um
desses meninos geniais vai embora o futebol brasileiro morre um pouco mais.
Neymar,
que poderia ter sido o pioneiro desta nova onda, tornou-se apenas a exceção à
regra. E, como toda exceção, passou ser combatida. Assistimos a uma onda que
nasceu tímida, depois cresceu e transformou-se em tsunami, na quase unanimidade
de que ele deveria sair do País o mais rápido possível. Uniram-se jogadores em
atividade, ex-boleiros de talento reciclados em oráculos, mandachuvas da CBF,
Scolari e Parreira à frente, cronistas esportivos, dos toscos aos sofisticados,
cavaleiros do apocalipse das mesas redondas, somados às torcidas adversárias (a
vaia dos flamenguistas na despedida em Brasília foi grotesca). Todos, em
uníssono, passaram a grasnar o coro de "Vai, Neymar".
Ouvi
poucas vozes dissonantes. Neste jornal, a palavra lúcida de Antero Greco, que
escreveu dois estupendos artigos a respeito, "O brasileiro quer
tristeza" e "O Brasil é pequeno" (Estadão, 22/5/2013 e
27/5/2013). Na TV, Fernando Calazans perguntou aos seus parceiros de mesa como
havíamos chegado ao absurdo de achar que um jogador do país pentacampeão do
mundo precisava ir para a Europa aprender a jogar futebol? "Didi precisou?
E Garrincha? Pelé foi aprender a jogar na Europa?"É um escândalo, de fato.
Enfim,
Neymar foi levado pela força da grana e, ao mesmo tempo, expulso pelo ambiente
quase consensual de bota-fora criado dentro do Brasil, país de baixíssima
autoestima, como se sabe. Foi um crime coletivo, que poderá ser estudado um dia
como "case" particular do nosso ancestral complexo de vira-latas.
De agora em diante Neymar poderá ser admirado sem reservas no
Brasil, pois passa a jogar na terra dos "senhores". A pior servidão é
a do escravo que acorrenta a si mesmo.
[ Luiz Zanin, "O Estado
de S. Paulo", 28 de maio de 2013 ]
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