É fato fartamente documentado que governos brasileiros, com apoio de parte dos segmentos mais favorecidos e de intelectuais que abraçaram a eugenia, tentaram apagar, nos primeiros anos do pós-abolição, a presença do negro da História do Brasil. Este projeto se manifestou do ponto de vista físico e cultural. Fisicamente o negro sucumbiria ao branqueamento racial promovido pela imigração subvencionada de europeus, capaz de limpar a raça em algumas gerações. Do ponto de vista cultural, houve uma tentativa sistemática de eliminar as formas de aproximação com o mundo e elaboração de práticas cotidianas (jeitos de cantar, rezar, comer, louvar os ancestrais, festejar, lidar com a natureza etc.) produzidas pelos descendentes de africanos, desqualificando como barbárie e criminalizando como delitos contra a ordem seus sistemas de organização comunitária e invenção da vida.
Se hoje
não temos mais a pregação explícita de uma política de branqueamento, ainda
estamos distantes de superar o que Joaquim Nabuco chamou de “obra da
escravidão”. Há um senhor de engenho morando em cada brasileiro, adormecido.
Vez por outra ele acorda, diz que está presente, se manifesta e adormece de
novo, em sono leve.
Há um
senhor de engenho nos espreitando nos elevadores sociais e de serviço; nos
apartamentos com dependências de empregadas; no bacharelismo imperial dos
doutores que ostentam garbosamente o título; na elevação do tom de voz e na
postura senhorial do “sabe com quem você está falando?”; no deslumbre das
elites que buscam “civilizar” os filhos em intercâmbios no exterior; na cruzada
evangélica contra a umbanda e o candomblé; na folclorização pitoresca dessas
religiosidades; nos currículos escolares fundamentados em parâmetros europeus,
onde índios e negros entram como apêndices do projeto civilizacional predatório
e catequista do Velho Mundo; no chiste do sujeito que acha que não é racista e
chama o outro de macaco; no pedantismo de certa intelectualidade versada na
bagagem cultural produzida pelo Ocidente e refratária aos saberes oriundos das
praias africanas e florestas brasileiras.
Recentemente
observamos a ocorrência de alguns eventos que revelam a permanência de práticas
senhoriais que continuam nos assombrando. Um grupo de estudantes de Direito da
UFMG realizou um trote em que veteranos se travestiam orgulhosamente de
nazistas e uma caloura pintada de preto era acorrentada, portando um cartaz
onde se lia “Chica da Silva”. Continua, também, a polêmica que envolve clubes
de ricaços no Rio e em São Paulo que exigem uniformes identificadores das babás
dos filhos bem nascidos de sinhazinhas e sinhozinhos. Temos, por fim, o
siricotico de certos setores indignados com a proteção trabalhista que os
empregados domésticos passarão a ter no Brasil. O argumento de que os direitos
— como o FGTS — encarecerão demasiadamente o trabalho e gerarão desemprego
esconde uma questão de evidente fundo cultural: o incômodo de uma elite que
sempre desqualificou o serviço doméstico e é herdeira de uma das maldições que
o cativeiro legou entre nós; a ideia de que a exploração do serviço braçal é
quase um favor que o senhor presta àquele a quem explora. Jogam no mesmo time
dos que diziam, na abolição da escravatura, que sem o seu senhor o negro
quedaria desamparado.
Tudo isso
nos permite constatar que o já citado Joaquim Nabuco de fato acertou na mosca.
Disse ele que mais difícil do que acabar com a escravidão no Brasil seria
acabar com a obra que ela produziu. É ela, a obra da escravidão, erguida em
alicerces sedimentados de uma forma profunda e eficaz na alma brasileira, que
até hoje nos assombra — porque nos reconhecemos nela como algozes ou vítimas
cotidianas — e precisa ser sistematicamente combatida.
Luiz
Antonio Simas é professor
de História